Seu Manel morava na roça desde o nascimento. Humilde,
sempre trabalhou no campo e criou seus 8 filhos com o dinheiro vindo da “sua terra”. Ao completar 76 anos de
idade, durante uma pequena festinha que Dona Nininha, sua esposa, havia
preparado junto aos demais familiares, ele sentiu uma dorzinha na “boca do estômago”. Achou que era ar preso e melhorou após tomar um bicarbonato. No outro dia cedo, Dona Nininha
insistiu para que ele procurasse o médico da cidade. Enrolou, não gostava muito de ir ao médico.
O tempo foi passando e as coisas foram piorando. Seu Manel
começou a sentir cansaço durante suas atividades habituais. Certo dia, ao carregar
um saco de farinha, sentiu "uma forte dor no peito e uma suadeira igual de
tuberculoso". Conversou com seu compadre Zé Tinoco, que o assustou
dizendo que poderia ser problema do coração.
Depois de muita insistência da esposa, resolveu
procurar um médico em Alvinópolis, cidade próxima ao seu sítio. Avaliado pelo Dr. José Sylvio, grande cirurgião, cardiologista e geriatra da região, a suspeita do compadre confirmou-se: era o coração. Após um contato telefônico, aceitamos a transferência para conclusão da propedêutica, aqui em Belo Horizonte.
Seu Manel conquistou todo mundo com seu jeito humilde e
educado. Matuto da roça, percebeu pela nossa prosa
que seu problema não era muito simples. Após uma extensa avaliação, indicamos o cateterismo
cardíaco, que diagnosticou inúmeras lesões nas coronárias. O caso era cirúrgico e sem condições de realização de angioplastia. O coração já estava muito debilitado e a
cirurgia seria de altíssimo risco; porém, optamos pela intervenção.
Ele era tão gente boa, que ficamos muito
tristes em ter que dar a notícia. Chegamos ao quarto e o
Seu Manel estava devorando um frango com quiabo. Quando nos viu, já foi logo falando com um sorriso largo no rosto:
- Ô seus Dotô, esse franguim tá bão dimais da conta! Que saudade da minha terrinha!
Nos aproximamos e comecei a explicar:
- Ô Seu Manel, acabamos de ver o
exame do senhor...
- E aí Dotô? As veia tão intupida deveras?
- Estão Seu Manel, nós vamos precisar fazer uma cirurgia...
- Ô ou.....Vão ter que abrir meu peito? – disse após roer um ossinho da asa de frango.
- Isso mesmo, Seu Manel, nós vamos tirar uma veia aqui da
perna do senhor e vamos colocar no lugar da veia entupida do coração. Pode ficar tranquilo, que a equipe de cirurgia é muito boa. O senhor vai ficar bom rápido. Entendeu?
- Só não intendi uma coisa... Essa veia que cês vão tirá da minha perna não vai fazer falta lá não?
As gargalhadas foram inevitáveis.
A cirurgia foi muito complicada. O coração dele já estava muito frágil e as coronárias bem doentes. Seu Manel
chegou a ter uma parada cardíaca no CTI, esteve gravíssimo, respirando com a ajuda de aparelhos e com drogas
para manter a pressão e o coração funcionando. Eu cheguei a desengana-lo umas quatro vezes
para Dona Nininha. Felizmente, arranjando forças, não sei de onde, Seu Manel conseguiu sair do CTI. Seus
colegas de enfermaria e toda a equipe comemoraram muito o seu retorno. Surpreendendo
a todos, após alguns dias de recuperação, iria receber a alta do hospital. Havia, literalmente,
nascido de novo. Na despedida, agradeceu bastante e fez questão de lembrar:
- Ô Dotô, num é que a veia da perna não tá fazendo falta mesmo não!
Após novas gargalhadas assinamos a
alta.
A história do Seu Manel frisa uma das
grandes verdades da medicina que não estão escritas nos livros: a ignorância protege! Ignorância não no sentido pejorativo, mas de desconhecimento. A pessoa
esclarecida sofre por antecipação. Sofre a toa ou sofre duas
vezes. Uma antes, completamente desnecessária, e outra depois. O melhor é tentar se manter alheio. É difícil, eu sei, mas vale tentar. Arranje alguém de confiança e interfira o mínimo possível. O conhecimento torna-se angustiante,
pois expõe os perigos. A ignorância protege, pois oculta os riscos, tornando as situações muito mais “seguras”.
Concordo.
ResponderExcluirAs vezes sofremos por antecipação, achando que somos detentores do saber.
primo,para sermos alheios com conhecimento, temos que entregarmos ao outro ( profissional), e confiar....nem Freud conseguiu tratar dele mesmo....abração
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