Quem sou eu

terça-feira, 24 de abril de 2012

A Ignorância Protege


     Seu Manel morava na roça desde o nascimento. Humilde, sempre trabalhou no campo e criou seus 8 filhos com o dinheiro vindo da sua terra. Ao completar 76 anos de idade, durante uma pequena festinha que Dona Nininha, sua esposa, havia preparado junto aos demais familiares, ele sentiu uma dorzinha na boca do estômago. Achou que era ar preso e melhorou após tomar um bicarbonato. No outro dia cedo, Dona Nininha insistiu para que ele procurasse o médico da cidade. Enrolou, o gostava muito de ir ao médico.

     O tempo foi passando e as coisas foram piorando. Seu Manel começou a sentir cansaço durante suas atividades habituais. Certo dia, ao carregar um saco de farinha, sentiu "uma forte dor no peito e uma suadeira igual de tuberculoso". Conversou com seu compadre Zé Tinoco, que o assustou dizendo que poderia ser problema do coração.

    Depois de muita insistência da esposa, resolveu procurar um médico em Alvinópolis, cidade próxima ao seu sítio. Avaliado pelo Dr. José Sylvio, grande cirurgião, cardiologista e geriatra da região, a suspeita do compadre confirmou-se: era o coração. Após um contato telefônico, aceitamos a transferência para conclusão da propedêutica, aqui em Belo Horizonte.

     Seu Manel conquistou todo mundo com seu jeito humilde e educado. Matuto da roça, percebeu pela nossa prosa que seu problema não era muito simples. Após uma extensa avaliação, indicamos o cateterismo cardíaco, que diagnosticou inúmeras lesões nas coronárias. O caso era cirúrgico e sem condições de realização de angioplastia. O coração já estava muito debilitado e a cirurgia seria de altíssimo risco; porém, optamos pela intervenção.

     Ele era tão gente boa, que ficamos muito tristes em ter que dar a notícia. Chegamos ao quarto e o Seu Manel estava devorando um frango com quiabo. Quando nos viu, já foi logo falando com um sorriso largo no rosto:
     - Ô seus Dotô, esse franguim tá bão dimais da conta! Que saudade da minha terrinha!
     Nos aproximamos e comecei a explicar:
     - Ô Seu Manel, acabamos de ver o exame do senhor...
     - E aí Dotô? As veia tão intupida deveras?
     - Estão Seu Manel, nós vamos precisar fazer uma cirurgia...
     - Ô ou.....Vão ter que abrir meu peito? disse após roer um ossinho da asa de frango.
   - Isso mesmo, Seu Manel, nós vamos tirar uma veia aqui da perna do senhor e vamos colocar no lugar da veia entupida do coração. Pode ficar tranquilo, que a equipe de cirurgia é muito boa. O senhor vai ficar bom rápido. Entendeu?
     - Só não intendi uma coisa... Essa veia que cês vão tirá da minha perna não vai fazer falta lá não?
     As gargalhadas foram inevitáveis.

     A cirurgia foi muito complicada. O coração dele já estava muito frágil e as coronárias bem doentes. Seu Manel chegou a ter uma parada cardíaca no CTI, esteve gravíssimo, respirando com a ajuda de aparelhos e com drogas para manter a pressão e o coração funcionando. Eu cheguei a desengana-lo umas quatro vezes para Dona Nininha. Felizmente, arranjando forças, não sei de onde, Seu Manel conseguiu sair do CTI. Seus colegas de enfermaria e toda a equipe comemoraram muito o seu retorno. Surpreendendo a todos, após alguns dias de recuperação, iria receber a alta do hospital. Havia, literalmente, nascido de novo. Na despedida, agradeceu bastante e fez questão de lembrar:
     - Ô Dotô, num é que a veia da perna não tá fazendo falta mesmo não!
     Após novas gargalhadas assinamos a alta.

    A história do Seu Manel frisa uma das grandes verdades da medicina que não estão escritas nos livros: a ignorância protege! Ignorância não no sentido pejorativo, mas de desconhecimento. A pessoa esclarecida sofre por antecipação. Sofre a toa ou sofre duas vezes. Uma antes, completamente desnecessária, e outra depois. O melhor é tentar se manter alheio. É difícil, eu sei, mas vale tentar. Arranje alguém de confiança e interfira o mínimo possível. O conhecimento torna-se angustiante, pois expõe os perigos. A ignorância protege, pois oculta os riscos, tornando as situações muito mais seguras.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Vias de Parto

     A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda uma taxa de 15% de cesareanas nos partos realizados no mundo. Em 2010, o Brasil chegou a 52% de cesáreas, sendo o ano da inversão das taxas. Na rede pública (SUS) essa taxa é de, aproximadamente, 37% e, na rede privada, chega-se ao patamar de 82%. Em alguns serviços privados, a taxa já está se aproximando dos 100%!! Realmente, no nosso dia-a-dia nota-se que o parto normal (ou vaginal) vem se tornando uma raridade.

     O Brasil está atravessando uma mudança cultural em relação a via do parto. Não quero entrar no mérito da questão, que possui defensores convictos dos dois lados. Cada um dos procedimentos possui vantagens, desvantagens e seus riscos inerentes. Gostaria apenas de discutir essa mudança de comportamento. Raro presenciarmos este tipo de mudança, que geralmente é muito lenta; entretanto, na era da informação (muita quantidade e pouca qualidade), isso tornou-se visível. No futuro, vou dizer que nasci de parto normal e vai ser um absurdo!

     Quando decidimos mudar uma conduta ou prática já rotineira, nos pautamos em alguns fatores:

1.    É mais eficiente
2.    É mais confortável
3.    É mais barato
4.    É mais seguro
5.    Todo mundo está fazendo assim
6.    O melhor do mundo faz assim
7.    A estatística mostra que é melhor
8.    Eu estou afim de fazer assim a partir de agora

     Os argumentos, na maioria das vezes, são legítimos, mas não possuem embasamento científico algum. Cientificamente falando, a alternativa 1 pode ser absolutamente igual a 8. Isso é fato. Depois da medicina baseada em evidência, ao contrário do que parece, ficou muito mais difícil provar algo sem questionamentos. Além disso, geralmente a verdade é muito duvidosa e recheada de segundas intenções. Em medicina, onde as variáveis são infinitas, a definição de certo ou errado é muito complicada.

    Antigamente, as condutas eram baseadas em crendices, experiências passadas, suposições, poder da maioria, imposição dos mais fortes e na opinião dos especialistas. É... analisando friamente, acho que não mudou muita coisa não.

      Não sou a favor das cesáreas eletivas, mas isso já é uma realidade que deve ser respeitada. Os riscos são maiores? Depende do ponto de vista. Nossa sociedade muda frequentemente para alternativas piores e os discursos de defesa e oposição são sempre muito semelhantes entre os temas. Sempre teremos os saudosistas que acharão as condutas antigas melhores, os "do contra" que vão morrer discordando, os "vira-folhas" que vão mudar de opinião várias vezes, e aqueles que, de tão convictos da eficiência da nova prática, abandonam as antigas com uma facilidade impressionante. Rimos bastante das condutas do passado, e nossos descendentes, com plena certeza, rirão muito das nossas.

      Minha única preocupação é que os obstetras formados hoje não estão mais aprendendo a conduzir partos vaginais. O mercado não está oferecendo essa opção. Infelizmente, em breve, não será possível optar pelo parto normal. Hoje, a mulher que ainda opta pelo parto vaginal já é considerada uma corajosa. Pelas amigas e pelos próprios médicos! É isso que dói, uma conduta sabidamente adequada e segura ser abandonada como inútil ao longo dos anos. Divagando um pouco mais, quem sabe, em um futuro próximo, seja bacana voltar a ter parto normal.

    Independente da via do parto, vale lembrar que a dificuldade maior inicia-se após o nascimento. Ensinar bons princípios, dar o exemplo e não deixar o filho ser criado só pela babá são desafios bem maiores...

     Quando a episiotomia assusta mais que a cicatriz de uma cesárea, os valores já se inverteram, mudaram. Não adianta ficar discutindo ou brigando. Hoje em dia, cirurgia assusta muito pouco, vide as cirurgias plásticas. A ausência do medo promove uma banalização perigosa.

     No futuro, utilizaremos algumas expressões para nos referirmos a coisas antigas ou ultrapassadas, tais como: mais antigo que serra... mais velho que guaraná de rolha... isso é de mil novecentos e Kafunga... mais antigo que andar para frente... isso é da época que o colo do útero dilatava...



Alguns dados científicos...

Frequência por 10.000 nascimentos

Parto Normal sem Complicações
Parto Normal Complicado    (ex: fórceps)
Cesárea Eletiva
Cesárea em Trabalho de Parto
Hemorragias Cerebrais
2.9
8.0
4.1
7.4
Convulsões
6.4
11.7
8.6
21.3
Depressão Neurológica
3.1
9.2
6.7
9.6
Dificuldade de Amamentação
68.5
72.1
106.3
117.2
Problemas Respiratórios
25.8
39.1
71.3
103.2
Fonte: UpToDate

terça-feira, 10 de abril de 2012

Troque Exame por Atenção

Alerta: Exames em excesso podem ser prejudiciais a saúde!

     A postagem de hoje é uma homenagem ao Dr. Bernard Lown, médico, inventor do desfibrilador cardíaco e ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1985. Em 1996, ele publicou o livro “The Lost Art of Healing - Practicing Compassion in Medicine” que me inspirou neste texto.

      A tecnologia está avançando muito na medicina moderna. Exames cada vez mais sensíveis e caros surgem a cada dia, porém, a sobrevida dos pacientes não está aumentando proporcionalmente aos custos gerados. A troca de um bom exame clínico por exames complementares é muito mais dispendiosa, arriscada e ineficaz. Infelizmente, a medicina guiada por exames já é uma realidade difícil de ser suplantada.

     Exames excessivos desnecessários transformaram a medicina tradicional. A atenção ao paciente, essência da arte médica, não está ocupando o seu verdadeiro lugar. Os próprios pacientes estão exigindo exames. Esqueceram o que é atenção médica. Exame sem indicação precisa aumenta muito a chance de erro no diagnóstico. Achados casuais, encontrados em exames sem indicação precisa, são muito frequentes. O "overdiagnosis" ou superdiagnósticos estão cada vez mais frequentes e acabam gerando o "overtreatment" ou tratamentos desnecessários e potencialmente arriscados.

    Os exames são complementares a uma boa avaliação clínica. Lembre-se que exame sozinho é igual a nada. Inúmeros pacientes passaram a exigir exames que leram na internet ou em alguma revista, a palavra do médico perdeu força. Os culpados? Nós médicos, claro!

     Outro problema grave (como já disse na postagem sobre Check-up) é a acomodação com exames ditos normais. A falsa sensação de segurança oferecida pelo amontoado de exames complementares normais, tanto para o paciente quanto para o médico, é um risco igual ou maior ao gerado por exames alterados.

     Vocês sabiam que 70% dos diagnósticos corretos em medicina vêm de uma anamnese (conversa entre o médico e o paciente) bem feita? Acrescidos do exame físico e de exames simples (hemograma, urina rotina e eletrocardiograma, por exemplo), estes diagnósticos chegam a 85%!!!! Apenas 5% dos diagnósticos são realizados com exames considerados modernos e caros, tais como ressonância magnética e tomografia computadorizada.

     Não podemos seguir a medicina “americanizada” (cara, muito especializada, sem relação médico-paciente, falida e pouco resolutiva) baseada em muitos exames e pouca conversa. Os americanos são os que mais gastam com saúde e nem por isso têm a melhor expectativa de vida. 

      A sociedade precisa entender que uma consulta médica bem feita vale muito. Não só pela economia que ela gera mas pela sua eficiência também. A figura do bom clínico geral é indispensável. Nossos governantes e a população é que irão escolher qual medicina teremos no futuro: a "americanizada" ou uma medicina centrada no cliente com mais conversa, menos exames, mais racional e efetiva, com a figura do clínico geral gerenciando as avaliações especializadas realmente necessárias?

     Esta postagem é para alertar a todos sobre o seguinte... O que fornece o diagnóstico correto em saúde é a história clínica, o exame físico e exames complementares simples. Valorize o médico que pode lhe oferecer isto, independente de plano de saúde. Quando precisar ir ao médico novamente, ao invés de exigir exames, exija atenção e tempo para uma boa história clínica. Sua saúde agradece!


Dr. Bernard Lown em 2007

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Gato Preto

     A valorização excessiva de títulos, diplomas e da teoria minimiza a importância da prática em várias profissões. Na saúde (e talvez em todas as profissões), estamos formando profissionais muito preocupados com o currículo e que colocam a atenção direta ao paciente em segundo plano. Fazer uma prova tornou-se mais  importante que dar atenção ao paciente. A técnica se sobrepõe ao humano e a satisfação do cliente, indispensável para a perenidade do serviço, torna-se subvalorizada. A satisfação está diretamente ligada a atenção prestada. Técnica perfeita sem atenção não satisfaz, independente do resultado final. Como ensinar com qualidade e efetividade na área de saúde? Quais indicadores utilizar?

     As novas modalidades de aprendizado em saúde são importantíssimas e vêm se desenvolvendo a cada dia. A tecnologia pode e deve ser explorada ao máximo. O "e-learning" (aprendizado via internet) já é uma realidade com benefícios indiscutíveis, assim como a utilização da tecnologia virtual. As simulações realísticas (desenvolvidas com equipes multidisciplinares, robôs, manequins e até atores profissionais) vêm se multiplicando com um potencial enorme para minimizar o abismo entre teoria e prática, porém, ainda são para poucos. O contato direto com o paciente sob supervisão direta de profissionais experientes continua sendo a modalidade mais efetiva. A residência médica, indiscutivelmente, é um berçário de bons profissionais. O equilíbrio entre a tecnologia e o afeto deve ser buscada incessantemente.

     Não conseguimos mensurar o aprendizado das relações interpessoais, da disponibilidade e do verdadeiro dom de cuidar. Estes são pontos cruciais na área de saúde, mas são intangíveis, logo, torna-se praticamente impossível "dar uma nota" para esses quesitos. A intangibilidade prejudica as mensurações. A realidade exposta por inúmeros indicadores inúteis é cada vez mais comum. O número de atendimentos, por exemplo, utilizado amplamente, definitivamente não indica a qualidade do serviço. O gestor que se gaba de atender muitos pacientes no seu pronto-socorro certamente está dando um tiro no próprio pé. Na prestação de serviços, a quantidade é inimiga mortal da qualidade. 

     Talvez seja por isso que temos tanta dificuldade em achar indicadores realmente úteis na área de saúde. Na maioria das vezes, eles avaliam a qualidade dos processos e não dos serviços. As peculiaridades de cada paciente e das inúmeras variáveis durante um mesmo tipo de tratamento remetem a Teoria do Caos, onde qualquer variável, por menor que seja, interfere no resultado final. As comparações são sempre falíveis, assim como a maioria dos indicadores, muitas vezes manipulados estatisticamente para não prejudicar acreditações, nas quais a maioria dos colaboradores da instituição não acreditam.

     O caminho, já sendo trilhado pelas grandes instituições de saúde (na minha opinião, sem volta), é otimizar todos os processos não relacionados ao contato direto com o paciente. Processos são mais tangíveis, mensuráveis e comparáveis que a assistência. Enquanto isso, quebremos a cabeça para inventar indicadores relacionados a assistência. Avaliações realizadas pelos próprios clientes, com o desenvolvimento de ferramentas "pós-venda", talvez seja um caminho. Certamente complicado e incerto também.

     Concluindo, a mensuração da qualidade da prestação e do ensino em serviços de saúde é incerta, complexa e desafiadora. Inspirado no Prof. Savassi, procurar indicadores ideais em medicina é a mesma coisa que procurar um gato preto, em um quarto escuro e com os olhos vendados. Ah! Lembrando que o gato não está lá.