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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sr.Olímpio e a Cerveja

    Após o susto da última postagem (Papai Ganhou na Loteria), gostaria de agradecer as manifestações de carinho e dizer que ele está ótimo. Hoje, para relaxar um pouco, contarei um caso, dentre vários que aconteceram comigo dentro do hospital.

Em 2003, havia acabado minha especialização em Clínica Médica no Hospital Felício Rocho e para minha alegria fui convidado a permanecer na equipe de Medicina Interna. Um dos primeiros pacientes que acompanhei, já como preceptor, me marcou bastante. Não pela complexidade do caso e sim, por um episódio ocorrido durante uma de suas internações.

Sr. Olímpio (nome fictício) tinha 71 anos e era portador de neoplasia de próstata avançada já com metástases disseminadas e tratamento oncológico esgotado. A equipe da urologia havia solicitado a interconsulta para avaliação de um sangramento importante. Chegamos ao quarto e encontramos um senhor muito emagrecido e abatido devido ao tratamento a que vinha sendo submetido. Os olhos verdes eram marcantes em meio à uma palidez importante. A sonda urinária estava cheia de sangue. A filha encontrava-se desesperada com o quadro delicado de seu pai. Após várias transfusões de sangue e correções da coagulação o sangramento finalmente parou. Durante esta internação ocorreu o fato peculiar que conto a seguir.

       Sexta-feira à tarde, estávamos, eu e meus residentes, na nossa segunda visita diária aos pacientes internados (nossa equipe passa, impreterivelmente, duas vezes, no mínimo em cada cliente). No início das visitas passamos no quarto do Sr.Olímpio. Encontrei-o tomando um suco de uva, seu estado geral era muito grave. Todos já aguardavam o seu falecimento. Bastante desnutrido, fraco e inapetente, a única coisa que ele ainda conseguia ingerir era o suco de uva. A doença estava avançando e não tínhamos mais nenhum tratamento específico a ser feito. Sr.Olímpio era um paciente terminal e o suporte paliativo era o que podíamos oferecer. Conforto, atenção e a tentativa de minimizar qualquer tipo de sofrimento. Pode parecer esquisito, mas este tipo de atendimento pode trazer uma satisfação muito intensa para o médico. A cura já não é o objetivo. Eu, particulamente, gosto muito de ajudar, de alguma forma, estes clientes. Uma das minhas armas prediletas é o bom humor. Geralmente tento descontrair um pouco o ambiente e buscar um sorriso dos meus pacientes. No caso do Sr.Olímpio, não era diferente, e ao vê-lo tomando o suco  de uva, perguntei despretensiosamente: 

   - Sr.Olímpio, você sabia que é proibido ingerir bebida alcóolica aqui no Hospital?

  - Ô Dr.Breno, quem me dera... Tô com saudade mesmo é de tomar uma cervejinha gelada - balbuciou bem baixinho.

  - Pois bem, quando eu terminar de visitar todos os pacientes, trago uma cervejinha para tomarmos juntos. Afinal de contas, hoje é sexta-feira né?

        Sr.Olímpio me olhou meio desconfiado, se despediu e acho que jamais imaginou que eu estava realmente falando sério.

  Após o término da nossa visita, expediente finalizado, fomos à um buteco em frente ao hospital buscar a cervejinha do Sr.Olímpio. Comprei duas, estupidamente geladas. Cerveja tem que ser bebida em copo de vidro e o hospital não disponibilizava, logo, pedi ao dono do buteco cinco copos emprestados.

 - Já liberei as garrafas. Infelizmente não posso emprestar os copos - disse ele intransigente.

  - Deixa eu lhe explicar a situação. Eu sou médico aqui do hospital e estou com um paciente terminal internado lá. Ele está morrendo, literalmente, de vontade de tomar uma cerveja. Você vai ter coragem de negar este pedido? Me empresta os copos que te devolvo daqui a pouco.

  - Ô Dr., porque você não falou antes, claro que te empresto - disse todo solícito e antes de sairmos do buteco ainda perguntou - Você não quer ser o meu médico não?

        Escondemos as garrafas e os copos na pasta do meu residente para evitarmos confusão e voltamos ao quarto do Sr. Olímpio. Chegamos e fomos recebidos pela sua filha. Ele parecia não acreditar quando retirei as duas garrafas que ficaram "mofadas" de tão geladas. Colocamos a mesinha na sua frente e o momento que se seguiu me faz arrepiar toda vez que conto este caso. Servi o Sr.Olímpio, sua filha, meus dois residentes e a mim. Todos ficamos aguardando a sua reação, afinal de contas, um pouco de suco de uva era tudo que ele conseguia beber até então. Brindamos e lentamente ele deu uma golada enorme com os olhos verdes fechados. Ao abri-los, fez um aaaaahhhhh..., olhou-me nos olhos e disse um muito obrigado que  jamais esqueci. Ao meu lado, sua filha chorava ao ver o seu velho pai tão satisfeito e feliz. Aquele momento foi muito bacana, por alguns minutos estávamos em uma mesa de bar, sem preocupações. Não afirmo que foi a cerveja mas em poucos dias o Sr.Olímpio ganhou condições de alta e faleceu apenas seis meses depois.

Esta pequena atitude me marcou muito e com certeza amenizou um pouco o sofrimento do Sr. Olímpio e da sua filha. Proporcionar um momento de alegria em meio ao desespero foi muito gratificante. A certeza do dever cumprido é o que move o médico. A medicina paliativa resume-se em oferecer qualidade de vida aos pacientes mesmo quando a medicina curativa já esgotou seus recursos. Uma completa a outra e devem trabalhar sempre juntas.  Medicina paliativa não é exclusividade de paciente terminal e envolve todas as atitudes que promovam conforto e satisfação aos nossos pacientes, de um analgésico bem indicado à um simples copo de cerveja.

6 comentários:

  1. Parabéns Brenão!
    Fiquei emocionada lendo o post.

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  2. Breno, no show vc era um ótimo ator, mas na vida real vc está melhor ainda. Parabéns pelo seu blog, um abraço, Carol Leonel ( da luz negra)

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  3. Adorei meu velho amigo! Vai pro Facebook e pro Twitter também. Um saudoso abraço,
    Ramon.

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  4. Sensacional. Excelente caso. Abraços e parabéns

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  5. Breno,
    conheci seu blog através da Erika, sua irmã.
    Já li todos os posts, mas esse é sem dúvida o meu preferido.
    Sou como você, uma médica das antigas, clínica, atualmente me especializando em Cuidados Paliativos em Milão.
    A sua atitude foi sensacional. Não consta em nenhum livro, em nenhum guideline e escapa a todo protocolo, mas foi a terapia mais eficaz nesse caso!
    Continue escrevendo seus casos. Eu também costumo fazer isso.
    Tenho um blog (racontosdacris.blogspot.com)e pode ser que tenha algum conteúdo lá que te interesse (apesar de ser bem mais pessoal).
    Foi um prazer te "conhecer"!
    Abraço,
    Cristiana

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  6. Breno,
    parabéns...só tenho a lhe dizer que se precisasse de um médico hoje ou se vier a precisar, procuro por voce, mais do que um excelente especialista, em determinados momentos precisamos de pessoas que nos percebam em nossas fragiliades e necessidades....e isto é além de ser médico!!!
    Meu especial abraço..
    Graça

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