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sexta-feira, 19 de março de 2021

Jan por Breno*

Instagram: @prof.breno
*publicado com anuência da família

    Sexta feira, 14 de fevereiro de 2020, recebi em meu consultório um senhor de 80 anos, grisalho, alto, holandês, radicado no Brasil há 50 anos. Seminarista, veio ao Brasil para fundar o Colégio Padre Eustáquio, mas foi "fisgado" por Ana. Abandonou a ideia do celibato e entregou-se de corpo e alma, literalmente, ao amor. Casou e teve três filhas. A conversa expôs um senhor extremamente dedicado à família, querido por todos à sua volta. Na consulta, estavam ele, Ana, Márcia (uma de suas filhas e a única em BH) e Flávio (seu genro, casado com Fernanda e morando em SP), todos extremamente preocupados com ele.
    
    Jan não reclamava e aceitava todas as condutas, não passivamente, mas confiante em nós, médicos. Escutava e seguia o que Ana e as filhas lhe pediam, não por submissão, mas por amor. Há 1 ano e alguns meses, vinha fazendo um tratamento para uma doença hereditária grave. Imunossupressores, perda de peso e, principalmente, de qualidade de vida.

    No meio da consulta, ele me disse que já estava desanimado e entregando os pontos. Ana e Márcia começaram a chorar. Não estava vendo sentido na vida daquela maneira. Lembrei da sua procedência e, com um otimismo realista que faço questão de ter com todos os meus pacientes, disse a ele: “De jeito nenhum, ainda tenho que tomar umas Heinekens com o Sr.!” - para quem não entendeu, a Heineken é holandesa também! 

    Naquele momento, o homem triste e cabisbaixo me olhou nos olhos, virou-se, olhou para a Ana (ela estava em uma cadeira atrás dele) e me perguntou: “Eu posso tomar uma Heineken?”. “Claro! Ainda mais se for com o seu médico!” - respondi. “Tem 1 ano e 36 dias que não tomo uma Heineken”. Na verdade, Jan sempre foi cervejeiro e, quando viajava para a Holanda para encontrar os irmãos, caprichava “de com força”. Frequentemente, tomava duas long-necks da cerveja da garrafa verde, mas, após o início do tratamento pesado, havia sido aconselhado a parar. 

    Gostaria de lembrar que não critico, nem julgo, a conduta dos colegas, mas naquele momento e naquela situação, a cerveja, ainda mais que em doses mínimas, seria o menor dos problemas. Ah! E não suspendi as medicações do tratamento. Ao final da consulta, combinei com ele de tomar uma Heineken no buteco “dele”. Assim fizemos e ali nascia uma relação bem maior do que a de médico e paciente.

Sexta de Carnaval 2020

    Em cada encontro, um aprendizado sobre família. Todos os anos, ele pedia o mesmo presente de aniversário: fotos atualizadas dos netos para colocar em frente à sua mesa de trabalho. Apenas isso ou melhor, tudo isso! A cumplicidade dele com Ana e suas meninas (Márcia, Ana Carolina e Fernanda) dava gosto de ver. Seus olhos brilhavam ao olhar para qualquer uma das suas 4 mulheres!

    O ano de 2020 foi complicado pela pandemia, mas conseguimos, com muito esforço, manter o mínimo de qualidade de vida para ele. Apesar das dores, foi à praia, curtiu a família e tomou suas Heinekens. Em agosto, fiz uma receita para ele que foi emoldurada! Virou o seu xodó!

Minha Receita Emoldurada!

Na Sala, ao lado das fotos dos netos!


    Pouco menos de um ano após a primeira consulta, fui visitá-lo em casa, dia 08 de fevereiro de 2021. Jan estava bem, seria apenas uma consulta de controle e para pôr a prosa em dia. Após muitas risadas, como sempre, me perguntou se era possível ficar em casa, caso piorasse. Ele não queria ir para o hospital. A doença era muito grave e, realmente, sem muita perspectiva de melhora. Combinamos de tentar mantê-lo em casa. O mais interessante desta visita é que ele estava bem e super tranquilo, mas, certamente, já percebendo algo diferente.
  
    Exatos 3 dias depois, na quinta-feira, dia 11 de fevereiro, começou a apresentar uma piora importante do quadro. Assim como havíamos combinado, fizemos de tudo para mantê-lo em casa e conseguimos. Dia 25 de fevereiro, já mais debilitado, ainda recebi uma foto tradicional dele com sua Heineken! No dia primeiro de março de 2021, ele partiu, de forma serena, linda e do jeito que ele pediu, perto das suas 4 mulheres, na sua cama.

    Após 20 anos de formado em Medicina, entendo perfeitamente o que meus melhores professores, incluindo o principal deles (meu pai) sempre fizeram: tornavam-se amigos dos seus pacientes. Uma consulta se torna uma boa conversa, uma fábrica de aprendizado. O tratamento torna-se único para aquele paciente. Na minha última visita, ele me perguntou: “Dentre todos os remédios que venho tomando ultimamente (e não eram poucos), qual você acha que é o mais eficiente?”. E aí? Vocês têm alguma dúvida da resposta? Uma dica: o remédio vem em frasco verde!



Em tempo, um agradecimento especial ao Auler, Gisela e Zanini que me ajudaram, de forma brilhante, a conduzir o caso do meu amigo Jan.


Instagram: @prof.breno




38 comentários:

  1. Muito bom Breno !!!estamos sempre aprendendo nessa vida !!

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  2. Que lindo Breno! Herdou bem as qualidades de seu pai

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  3. Lindo e doce relato, Doc! Poucos, como você, entendem a diferença entre “vida de qualidade até o fim” e “sobrevida” (ou seria subvida?...) . Obrigada por compartilhar e por ser “das antigas”: médico que olha para o paciente, não para os resultados dos exames! Seu amigo Jan, agora, intercede por você lá do Céu!
    Abs.
    PS: Dessa vez, não vou finalizar pedindo um Petscan ou uma ressonância de “corpo inteiro”. Vou de Heineken, em homenagem ao Sr. Jan. 🌷🙏🏽

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  4. Fantástico amigo. Um medico que conhece e respeita seu paciente, aplicango o excelente conhecimento da clínica no cuidado centrado em cada paciente. Sou seu fã amigo. Ja renho minhas diretivas antecipadas

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  5. Belíssima história Breno. É o médico na acepção da palavra. Que A luz Divina ilumine sempre sua vida e condutas. Parabéns.

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  6. Cada paciente tem o direito de ter a autonomia de como querem ser tratados.Nós, médicos, temos que descer do pedestal dos nossos carimbos e deixar as diretrizes de lado, individualizando cada paciente.
    Saber o que é o sagrado de cada paciente é o melhor remédio que podemos receitar. E isso não aprendemos nos livros, apenas com uma boa escuta, conseguimos descobrir.

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  7. Você devolveu a vontade de viver, a esperança!
    Foi um ano lindo! Com dor, mas muita alegria! Sempre brindando os bons momentos!
    Sua sensibilidade, seu profissionalismo e sua forma de enxergar o paciente, uma pessoa! Com sonhos!
    Sua disponibilidade em responder todas as dúvidas!
    E sua equipe! Dra Gisela! Um doce de pessoa! Que também teve uma conexão incrível com nossa família! Nos ajudou a decidir IR para praia. Cuidou do meu pai como se fosse o pai dela!
    E no finalzinho! Dr Auler e a Luzia! Anjos que nos mostraram o outro lado da dor, o AMOR! “Na dor vivenciamos o amor!”

    Minha eterna gratidão!

    Amo a frase do Alok: não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar o mundo de alguém!

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    1. A honra foi minha! Ele era diferente! Sensacional! Toda vez que eu tomar uma Heineken, lembrarei dele! Contem comigo!

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  8. Top Breno, me lembrou meu pai, morreu comigo em casa, voce e José Olinto o estabilizaram e fizeram o melhor para ele, partir perto da família.

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  9. Nota 10. Concordo plenamente. Fiz isso para minha mãe. Faria novamente.

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  10. Parabéns Breno! Muito legal seu relato. Isso se chama empatia. Colocar-se no lugar do outro. Sem empatia, a teoria torna nosso trabalho menor. É por isso que você conseguiu ser tão assertivo em seu tratamento e conseguiu dar qualidade de vida e de morte pro querido amigo Jan... pra mim não é surpresa por te conhecer (e à sua família querida) há tanto tempo. Continue nesse caminho e dando exemplo... precisamos de mais prof.Breno nesse mundo! Obrigado por compartilhar

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  11. Que relato!...Que sensibilidade!...Deus , em sua infinita bondade, sempre nos presenteia com Seus anjos (na Terra e no Céu)! O senhor é um deles, com toda a certeza! Que Deus continue iluminando seu caminho, seu ofício e sua família! Que tenhamos mais médicos no mundo como o senhor!

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  12. Grande Breno, velocista pela esquerda, chute forte, quebra linhas das defesas adversárias. Médico excepcional nas horas vagas... abraço

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  13. Que relato maravilhoso, dr. Breno! Emocionante! Nao o conheço pessoalmente, mas com certeza, terei essa oportunidade... Como amiga do Jan e da família, agradeço de coração o seu cuidado e a sua sensibilidade ao enxergar no Jan, não apenas mais um paciente, mas um ser humano incrível, desses que a gente tem o privilégio de conhecer e se tornar inesquecível nas nossas vidas!!! Que Deus o abençoe sempre, dr. Breno!

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  14. Parabéns Breno.Está igual o seu pai,meu guru Dr. Márcio ,abraços
    Carrara

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  15. História de vida muito bonita!!!Parabéns BRENO!!!

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  16. História de vida muito bonita!!! Parabéns BRENO!!!!

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  17. Uma delícia de ler esse relato! Sou suspeita pra falar de vc Dr Breno. Obrigada por compartilhar!

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  18. Bom dia prof Dr Breno. Parabéns pela postagem. São casos típicos e únicos q podem mostrar o talento de cuidar e 'ser' médico. E também revela o lado cronista. Seu trabalho se eterniza desta forma. Vida longa e próspera. Ricardo Tadeu Psicólogo.

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  19. Obrigado por compartilhar. Linda história!!!!

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  20. Linda história, parabéns meu caro

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  21. Que maravilha Breno, obrigado por compartilhar.

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  22. Existem pessoas, que não parecem seres humanos, eles são simplesmente inexplicávies. Gostaria de ter tido a oportunidade de conviver com sr. Jan e Dr. Breno você faz parte desse grupo. Viviane Franco/enfermeira

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